1.6.14

Em um domingo qualquer



[...] ou sobre a melancolia do futebol juazeirense.

Em um domingo qualquer nós saímos para o estádio Adauto Morais cedo, bem cedo. Passamos no mercado, tomamos um café, ou comemos uma buchada em Dona Francisca, partimos para uma cervejinha depois, logo ao lado. Juntamos aquela resenha esportiva e o jogo começa ali, duas ou três horas antes do apito inicial. Se já não temos o ingresso em mãos, vamos trocar as notas, ou arrumar com um cambista residente no Coliseu. As famílias das mais variadas cores e credos chegam junto às portas do “Adautão”, a torcida visitante (quando existe), também se aproxima. Nós então, precisamos beber o máximo de cerveja possível fora do estádio, pois lá dentro não pode. A grande graça e o grande feito é tentar burlar a segurança e entrar com tal líquido sagrado, cerveja. Quando conseguimos, somos loucos, quase heróis (para alguns).

Em um domingo qualquer entramos no estádio quando o time visitante ainda está no aquecimento, corremos para o alambrado para proporcionar carinhosamente aos atletas adversários, os mais diletos carinhos, homenageamos suas mães, pais, times e carreiras, a forma física e aspecto pessoal também não passam despercebidos. O jogo para nós, novamente começa ali. Então escolhemos o lugar pra sentar, sentar? Perto das cabines, ou na “nova” arquibancada? Nós preferimos mesmo é ficar em pé, atrás do banco de reservas destinado aos visitantes e ali fazemos nossa parte, infernizando a vida dos técnicos e auxiliares, bem como jogadores suplentes.

Em um domingo qualquer vemos o jogo contra o time da capital com a aquela certeza quase imbecil que podemos vencer, sim, vencer! Só não queremos que seja igual a aquela final, que certo da vitória, perdemos, entregamos ou nos entregaram? O jogo se desenrola e o resultado na maioria das vezes nem vale a pena. Sabemos que estes domingos são raros e que não temos a sorte de ser Salgueiro ou Juazeiro do Norte, somos felizes com o que temos e nos contentamos com tal, apenas com alguns domingos.

Em um domingo qualquer o jogo ainda é narrado no rádio, Herbert Mouze pensa do jeito dele, Raimundo Amarildo ainda está lá no campo, a torcida já envelheceu e envelhece cada vez mais. Os jogadores daqui encontram-se às centenas. É inegável a capacidade futebolística desta cidade, basta um busca rápida na história recente do futebol ainda amador, para descobrir nomes de atletas memoráveis e/ou promissores como Givaldo, Caboclinho, Miro Aranha, Péba, Nunes, Gerson, Muller, Jaílson Rêgo, Anísio, Nixon, Janílson, Cocada, Dedé, Toni Jarbas, Petros e tantos outros que por critério pessoal deixei de citar. Material humano existe, e como! Então, qualquer um, em plena consciência deve se perguntar todo ano, quando chega dezembro, quando janeiro já bate à porta de um novo campeonato baiano, “o que acontece com o Juazeiro Social Clube?”.

Em um domingo qualquer podemos esperar por planejamento e investimento. Organização e respeito para com os torcedores e seguidores. Aqui nós respiramos futebol. Em um domingo qualquer você pode perder ou ganhar, menos aqui em Juazeiro. Aqui o resultado é sempre o mesmo, já partimos para o jogo derrotados, já sabemos que será a mesma situação de anos atrás. Estou falando de um jogo, o futebol, que dentre as coisas menos importantes da vida, esta é a mais importante, já dizia um certo profeta/poeta/romântico. Sou um torcedor, mas creio que somos sofredores convictos de um time/cidade fadado ao ostracismo esportivo, que mesmo assim em determinados momentos do ano seguimos como uma religião, o Futebol Santo dos Últimos Dias. E como um rito religioso, nosso culto é aos domingos, na maioria das vezes às dezesseis horas, em um domingo desses aí qualquer.



26.5.14

Continuamos observando... A questão dos cultos afro-brasileiros




Prof. Pablo Magalhães
Editor-chefe
O Historiante


O que são ignorantes? O que é ignorar? Voltaremos à esta questão ao final deste pequeno texto.

De fato, e eu tendo a concordar com essa assertiva, vivemos em uma sociedade de ignorantes, que se regozija em valorizar e enaltecer a ignorância. Desconhecer e criticar (o velho ato que exercita o PRÉ-CONCEITO) é prática bastante comum entre boa parte (total parte, acredito) destes nobres e notáveis ignorantes.

A última amostra desta atitude partiu de um douto senhor, juiz federal titular da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo. Para este espécime da casta dos (in)tocáveis senhores do direito do país, religiões afro-brasileiras não seriam "religiões". A explicação? Bem, a "tentativa frustrada" de oferecer explicação a isso partiu de uma estratégia bastante oportuna: o que é religião? "Para mim...", pensou o nobre e sapiente juiz, e definiu o que para si, em sua criação cristã, seria uma expressão de credo religioso.

Na justificativa, a decisão em primeira instância, publicada no dia 1 de abril (hum... bastante sugestiva essa data), dizia que "manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem religião", porque elas não conteriam "traços necessários de uma religião, de acordo com um texto-base", tais como a Bíblia para os cristãos ou o Alcorão para os islâmicos. O Juiz ainda citou "ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado".

Um conceito limitado hein, Eugênio? Talvez o "Ego" que faz parte do seu nome (EU... Gênio!?!?!) esteja enviesando aquilo que você entende, enquanto cidadão, do que seja religião. Para seu modelo pequeno, estreito, os credos afro-brasileiros estariam de fora. Por quê? Ah, caro... Porque você IGNORA aquilo que está além do seu conceito.

O que sabemos: diante da repercussão de sua atitude, o juiz reconheceu na última terça-feira, dia 20, que as manifestações religiosas afro-brasileiras constituem, de fato, uma religião.

Juiz, em nome da equipe do Observatório do Historiante e do Projeto Historiante como um todo, convido-o a conhecer um pouco mais sobre as manifestações religiosas e culturais afro-brasileiras. Talvez assim (desejo de todos os professores), você APRENDA que fé, credo, EXTRAPOLAM seu curto conceito de RELIGIÃO.

http://ohistoriante.com.br/tambor-de-mina.htm

http://ohistoriante.com.br/rastafarianismo.htm

http://ohistoriante.com.br/candomble.htm

*          *          *

Ignorante:

1- Diz-se de pessoa que ignora, que não tem conhecimento de determinada coisa.
2- Diz-se de pessoa que não tem instrução, que não sabe nada.
3- Popularmente: falto de educação, ou aquele que não a tem; estúpido, grosseiro.

Ignorar:

1- Fazer de conta que algo, ou alguma coisa, não existe; não saber sobre uma determinada coisa.

Hehe, alguém aí achou o EU... Gênio nessas definições?

22.5.14

A demonização do espaço, a área VIP e seus entusiastas.




Existem dois tipos de evento, os privados e os públicos. Refiro-me a eventos musicais, shows, apresentações de bandas famosas ou o que costumamos chamar de festas. As festas das nossas cidades de Juazeiro e Petrolina cada vez mais afastam o grande publico das atrações, por vezes, há muito tempo esperadas, com a prática nefasta e excludente das áreas VIP.A área VIP é algo novo aqui na região e parece que veio para ficar. E que funciona da seguinte forma, o espaço do clube ou casa de show escolhida/escolhido para receber a atração é descaradamente “retalhado” e configurado para agradar aos pagadores exclusivos, o iluminado cliente VIP. Pelo porte das duas cidades e pelo nível das atrações trazidas para cá, os preços dos ingressos são proporcionalmente abusivos em comparação a outras cidades mais, digamos, desenvolvidas. O que por si só, já é um absurdo.

A pista virou o novo povo (povo aqui, não represente a massa), e sabemos que o povo não participa destas festas. Acho que muitas mulheres e homens do povo, por exemplo, gostariam de pagar um preço justo para ver uma artista, cantor ou banda renomado/renomada. Curtir um evento com segurança, bom trato e tranquilidade, a meu ver, nestes eventos e espaços “pista” é praticamente impossível. A pista tornou-se uma ilha de desgarrados, pobres coitados que não podem gozar dos prazeres e privilégios das áreas mais abastadas, com uísque caro e massagem no pé.Não sou contra a área VIP e sim contra a má utilização do espaço para quem fez a opção de não “ser” área VIP. Quem pode pagar por uma mesa, ou camarote, que pague! Mas, a organização do evento que não prejudique quem não quer, ou não pode, pagar pela mesma. 

A estrutura é montada para favorecer somente os que decidiram pagar um muito a mais, para obter privilégios que poderiam ser concedidos a todos os pagantes independente da classe ou área a que pertença se algumas outras questões fossem respeitadas, mas esta, já é outra história.Hoje já existe o VIP do VIP, as áreas “Privilege”, que como o próprio nome já incita, nos remente a algo singular e único. Nada mais é do que uma prática de cada vez mais restringir e limitar os espaços, demonizar e montar a alegoria do alpinista, onde homem/mulher tem que alcançar o cume do status social, para que até numa festa ou evento possa demostrar sua superioridade.

A criação da área VIP é reflexo de nossa sociedade, assim como outras questões mais relevantes, como a educação privada e os planos de saúde particulares. Contudo, esta questão pode servir perfeitamente para ilustrar o quanto, cada vez mais, o homem se separa do homem. Quem pode pagar, continuará a pagar, que vende sempre contará com uma clientela fiel. Que continuem a área VIP, mas que se respeite a opção, ou condição do outro

19.5.14

Amazonas quilombolas

Sabe a lenda grega de mulheres amazonas que viviam em um reino e eram habilidosas guerreiras? Então, vamos fazer uma viagem rápida,  quero te mostrar a versão negra-sertajena-nordestina-quilombola!



O legado de luta e resistência contra o modelo escravocrata que existiu no Brasil por 300 anos foi sempre uma marca dos territórios quilombolas. Aprende-se desde cedo nas escolas que o quilombo era um espaço de refúgio para os negros fugidos das fazendas no Brasil afora. As professoras do ensino fundamental I inclusive contam em detalhes a trajetória de Zumbi e sua vida no quilombo. Assim, temos uma legislação que reconhece como legítima essa resistência e garante aos descentes de quilombos a posse das terras por eles ocupada. Em várias partes do Brasil a luta de comunidades quilombolas pela posse da terra é notória. Junto com os indígenas os povos quilombolas frequentemente enfrentam a disputa de cada pedaço de chão com grandes latifúndios e em algumas situações tem ganhado. 
A luta quilombola em termos materiais se tornou a luta do povo negro pelo reconhecimento aos crimes a que foram submetidos e a equiparação de direitos, especialmente o direito a posse da terra. Nesse sentido alguns grupos que não tem um histórico de resistência escrava são considerados quilombolas pela afinidade étnica e pela demanda à parte que lhe cabe neste latifúndio. Ou ainda há identidade étnica posta e aceita. 
Pernambuco tem reconhecidos ao longo do seu território  120 comunidades quilombolas, um deles, Conceição das Crioulas se encaixa no perfil peculiar de território quilombola que não viveu um processo de resistência escravocrata. O mais interessante é que a representação estadual e as maiores conquistas estão com este povo que vive a 42 km de Salgueiro bem no meio do sertão central de Pernambuco.
Pernambuco é um estado que se destaca pela história de resistência à escravidão na formação de quilombos, inclusive porque foi um dos maiores produtores de açúcar na época da colonização nos séculos passados. Foi em uma região situada na então Capitania de Pernambuco que, entre o final do século XVI e início do século XVII, o famoso quilombo de Palmares se formou. Posteriormente, já no século XIX, essa província foi palco da formação do quilombo de Catucá, dessa vez em região localizada na Zona da Mata próxima à capital. 
A luta dos quilombolas do estado de Pernambuco conta com a forte presença de lideranças femininas e está caminhando cada vez para o sertão. Em Conceição das Crioulas foram mulheres que inicialmente se articularam para dar voz às reivindicações das comunidades. E em sua história Conceição apresenta característica tão peculiares que de modo algum desabilitam para a luta. 
As narrativas e construção histórica em Conceição das Crioulas lembram a historiografia africana, onde datas não são precisas e sentimentos são considerados prioritários, o que ao meu ver enriquece profundamente a construção histórica local pois compromete os sujeitos narradores como também participantes desta história.
Conceição das Crioulas é um território quilombola que luta pelo reconhecimento, posse da terra e melhoria de qualidade de vida. Segundo a tradição local, a comunidade foi fundada por seis crioulas que compraram as terras com dinheiro do próprio esforço ainda no "tempo dos reis". O único ano de fato marcado para os remanescentes da seis crioulas é 1802, data da compra e registro das terras, há escritos também na cidade de Flores com informações mais precisas sobre a transação. As crioulas compraram a terra após juntarem dinheiro trabalhando em lavouras de algodão. O esforço e a  ajuda da padroeira senhora Conceição, fez surgir a comunidade, que ao contrário de outros grupos quilombolas não foi o resultado de resistência e sim de uma transação comercial possível graças ao empreendimento das seis crioulas (uma delas, a Francisca, é símbolo do movimento em Conceição e está estampada em camisas, paredes e virou até boneca!). 
O mito da fundação de Conceição das Crioulas é permeado por uma história de liderança. Excepcionalmente, uma liderança de mulheres, "as seis crioulas". Conversando com Dona Generosa ou qualquer outra liderança mais antiga temos o retrato de uma comunidade que foi criada por mulheres fortes e resistentes, que, desafiando os padrões sociais da sua época, exerceram grande influência sobre seu grupo, na coordenação dos trabalhos, no plantio e colheita do algodão, no firme propósito de adquirirem a posse legal da terra, através da compra. "Em outros momentos da história de Conceição, especificamente quando aquelas pessoas começaram a ser expropriadas por outras, vindas de fora, atraídas talvez pela qualidade do solo propício ao plantio de algodão e à criação de gado, também foram as mulheres que se destacaram na luta pela recuperação daquelas terras. E hoje, na luta pela construção da identidade étnica e pela terra, são essas mulheres negras: trabalhadoras rurais, professoras, enfermeiras, artesãs e outras que estão no comando". 

Para saber mais sobre a história de Conceição, leia "Conceição das Crioulas: terra, mulher e política" de Maria Jorge dos Santos Leite ou faça uma visita ao território, que é no meio do caminho entre Cabrobó e Salgueiro aqui no sertão de Pernambuco. Acho que  a visita vai valer a pena.

18.5.14

Santo guerreiro

 Por Eduardo Souza Lima


Padroeiro da Inglaterra, Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro e Etiópia; das cidades de Londres, Barcelona, Gênova, Moscou, Beirute e Ilhéus; dos escoteiros, da Cavalaria do Exército Brasileiro e do Corinthians, o santo mais popular das faces da Terra e da Lua também é o mais pop.

São Jorge estampa camisetas, qual um Che Guevara celestial, foi cantado em verso e prosa por Jorge Ben (em “Jorge de Capadócia”) e Iron Maiden (“Flash of the Blade”), e até virou coadjuvante do desenho animado do herói favorito da garotada, Ben Dez – como o Sir George da série Supremacia alienígena. Venerado fervorosamente por milhões de fiéis das três grandes vertentes do catolicismo (a Igreja Católica Apostólica Romana, a Cristã Ortodoxa e a Comunhão Anglicana), também é um dos 14 santos auxiliares – que seriam os mais tenazes intercessores divinos contra moléstias diversas.

No Brasil, além de disputar a preferência dos católicos com Nossa Senhora Aparecida, ainda assume as formas de Ode, Ogum e Oxóssi na umbanda e no candomblé. Apesar de todo esse prestígio, chegou a ser rebaixado, assim como aconteceu com o ex-planeta Plutão: virou santo menor, de terceira categoria, por causa de sua origem envolta em incertezas. Uma reforma promovida pelo papa Paulo VI em 9 de maio de 1969, retirou do calendário litúrgico as comemorações dedicadas a santos cujas vidas eram conhecidas somente por relatos tradicionais, sem nenhuma documentação histórica. Coube a João Paulo II, pontífice mais sensível aos clamores populares, não só reabilitá-lo, como promovê-lo a arcanjo, no ano 2000. De lá para cá, a popularidade do Santo Guerreiro só cresceu.

Segundo a tradição, Jorge teria nascido no ano de 275, na Capadócia (região que hoje pertence à Turquia), filho de pais cristãos e abastados. Depois da morte do pai soldado, no campo de batalha, mudou-se com a mãe para a terra natal dela, Lida (ou Lod), na Palestina, onde se educou e entrou para o exército romano, sendo rapidamente promovido a capitão. Há quem acredite que, em verdade, Jorge teria nascido mesmo nessa cidade e que os primeiros narradores da história do santo teriam confundido os registros do guerreiro com a de um religioso conhecido, justamente, por Jorge da Capadócia, que viveu na mesma época.

Aos 23 anos, já com o posto de tribuno militar, foi morar na Nicomédia (atual Izmit, Turquia), então transformada em um dos centros administrativos do império por Diocleciano, e foi incorporado à própria guarda pessoal do tetrarca. Quando o imperador baixou um edito proibindo aos soldados romanos professar a fé cristã e os obrigando a oferecer sacrifícios aos deuses romanos, no início do que entrou para a história com o nome de Grande Perseguição, a maior e mais sangrenta perpetrada contra a religião em franca expansão nos territórios imperiais, Jorge não se conformou.

Segundo a tradição, durante a audiência no Senado que confirmaria o decreto imperial, ele teria se negado a cumpri-lo, dizendo que os ídolos adorados nos templos romanos eram falsos deuses. Diocleciano, que muito o estimava, tentou fazê-lo mudar de ideia, oferecendo-lhe riquezas. Diante de sua negativa, mandou torturá-lo. O suplício, porém, teria fortalecido ainda mais a sua fé: sempre que era levado à presença de Diocleciano e este lhe pedia que venerasse os deuses romanos, Jorge dizia: “Não, imperador! Eu sou servo de um Deus vivo! Somente a ele eu temerei e adorarei”.

Mesmo contrariado, Diocleciano mandou degolá-lo, o que, segundo a tradição, teria acontecido em 23 de abril de 303 – ou seja, quase dois meses depois de 24 de fevereiro de 303, data em que foi publicado o primeiro edito de perseguição aos cristãos, política adotada pelo tetrarca em busca de maior unidade no interior do império. O edito determinava que todas as igrejas dedicadas ao culto de Cristo fossem demolidas.

Os restos mortais do futuro santo foram transferidos para Lida, onde mais tarde o imperador Constantino, que em 313 lançara o Edito de Milão, ordenado que a fé cristã fosse livre e respeitada, fez erguer uma capela, que ajudou a disseminar a devoção ao mártir pelo Oriente. No século seguinte, já existiam em Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, cinco igrejas edificadas em sua memória; no Egito, foram construídos 40 conventos dedicados a ele. As Cruzadas foram decisivas para espalhar o culto do santo soldado pelo Ocidente.

Como outro herói mítico de origem romana, o rei Artur, Jorge também teve sua história recontada em baladas medievais, o que ajudou a lançar mais dúvidas sobre a sua real existência. Por isso, hoje é representado como um cavaleiro de reluzente armadura. Nas canções de gesta, Jorge era filho de Lorde Albert de Coventry, roubado ao nascer pela Dama do Bosque, depois de sua mãe ter morrido durante o parto. Treinado para ser um guerreiro invencível, após mil peripécias ele chega a Sylén, na Líbia. A cidade estava sitiada por um terrível dragão, que exigia de seus moradores o sacrifício de uma donzela por dia para não destruí-la. Jorge chega a tempo de matar o monstrengo com sua lança e salvar Sabra, a filha do rei, com quem se casa e vive feliz para sempre em sua Coventry natal.

Em outra versão, ele tem uma espada mágica chamada Ascalon e um cavalo branco, e depois de abater o dragão ainda converte os moradores da cidade em cristãos. A lenda do cavaleiro que matou um dragão já havia sido renegada no século V por um concílio, mas resistiu e ganhou força no tempo das Cruzadas. Inspirado nela, o rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão tomou São Jorge como padroeiro e partiu para Jerusalém. No século XIII, o dia 23 de abril já era celebrado naquele país, e em 1348 foi fundada a Ordem dos Cavaleiros de São Jorge, por Eduardo III. Os ingleses acabaram por adotá-lo como padroeiro, ornando sua bandeira com a cruz do santo. Aos poucos, seu culto se espalhou pela Europa continental, principalmente por Alemanha (Frederico I, o Barba Roxa, lhe dedicou uma ordem militar) e França (Santa Clotilde, mulher do rei Clóvis I, o primeiro monarca católico franco, mandou erguer vários conventos e igrejas em sua memória) e Catalunha, onde o seu dia, lá chamado San Jordi, é celebrado desde o século XIV.

Diz-se que a devoção ao Santo Guerreiro chegou a Portugal nos estandartes dos cruzados ingleses que ajudaram o primeiro rei do antigo condado, Dom Afonso Henriques, a conquistar Lisboa aos mouros, em 1147. Mas somente no século seguinte, no reinado de Dom Afonso IV, o grito de batalha “São Jorge!” começou a ser usado no lugar do “Sant’Iago!”. Santo Dom Nuno Álvares Pereira, um dos maiores heróis da história do país, creditava a ele a vitória portuguesa na Batalha de Aljubarrota, em 1385, e no reinado de Dom João I São Jorge finalmente substituiu Santiago como maior padroeiro de Portugal – hoje, porém, a honraria cabe oficialmente a Nossa Senhora da Conceição. O culto ao santo chegou ao Brasil tão logo desembarcaram aqui os portugueses – já em 1387, Dom João I decretara a obrigatoriedade do uso de sua imagem nas procissões de Corpus Christi. Mas ele só se tornou tão popular no país com o auxílio das religiões afro-brasileiras, por obra do sincretismo.

O catolicismo trazido pelos portugueses ao Brasil foi o da Contrarreforma, que reabilitou antigos costumes e crendices medievais. Entre essas práticas estava o culto dos santos. Enquanto na casa-grande a família branca venerava os seus, nas senzalas, os negros faziam festa para seus deuses. O convívio dos entes sagrados nas grandes fazendas, bem como a necessidade de disfarçar os cultos aos de origem africana, levou a uma aproximação, quase uma apropriação dos santos brancos pelos negros. Assim, Jesus e Oxalá se unificaram; Santa Bárbara virou Iansã; São Jerônimo, Xangô; Nossa Senhora da Conceição, Oxum etc. São Jorge assume vários mantos nas religiões afro-brasileiras. No candomblé da Bahia é Oxóssi e Ode; na umbanda de Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre, Ogum. Nas suas diferentes representações, o Santo Guerreiro é invocado como protetor contra o demônio, as tentações e a feitiçaria.

Reza a tradição, criada no Brasil, que as manchas da Lua seriam ele, seu cavalo e sua espada, sempre em vigília para defender aqueles que rogam por seu auxílio. Hoje, existem 26 paróquias dedicadas ao santo no Brasil, duas delas no Rio de Janeiro, onde o dia 23 de abril é feriado desde 2008.

 Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens
 
Observatório do Historiante, since 2013 © Observar e registrar.